terça-feira, 27 de outubro de 2009

Súbita

23/10/2009

Súbita. Esse era seu nome. Vagava pelo Novo Mundo, entre sonhos perdidos e malas vazias. Marejava, em sua contradição oceânica, águas de um reflexo distorcido. Afogava-se como Narciso em busca do outro e sofria como o grande poeta. Não acreditava no amor, somente na poesia de Clarice e nos versos de Bethânia. Não mostrava o corpo e os botões eram seus melhores amigos. Seu sorriso de carpideira aprontava histerias em procissões e nada lhe fazia ser. E tudo aquilo que lhe parecia verdade, claro e certo, se esvaiu: pelo ralo mais fétido na casa do ferreiro com espeto de pau. E o amor lhe contaminou, mais uma vez. Quando lhe parecia finito no peito, ele gritou e, finalmente, estava apaixonada. Seus lençóis nunca mais foram os mesmos. E o verbo se fez feminino, em sua forma mais transitiva. Súbita. Esse era o seu nome e aqui jaz aquilo que, um dia, foi crença: subitamente.

domingo, 11 de outubro de 2009

Olá, como vai você?

tra(b)dução bem livre de um poema de bukowski

este medo de ser o que eles são:
um morto.

pelo menos eles não circulam pelas ruas, eles
se cuidam e ficam lá dentro, aqueles
branquelas esquizóides
que se sentam solitários na frente de suas tvs,
com suas vidas cheias de risadinhas mutiladas e enlatadas.

sua vizinhança ideal
de carros estacionados
de gramadinhos verdes
de casinhas
de portinhas que se abrem e se fecham
quando seus parentes aparecem pra uma visitinha nos feriados
as portas se fechando
diante dos que morrendo morrem tão lentamente
diante dos mortos que ainda estão vivos
na sua quieta e típica vizinhança
de ruas sinuosas
de agonia
de confusão
de horror
de medo
de ignorância.

um cachorro parado atrás da cerca.

um homem silencioso na janela.

sábado, 19 de setembro de 2009

pássara azul no coração

há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou muito duro para ele,
e digo, fica aí dentro,
não vou deixar
ninguém te ver.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu derramei whisky em cima dele
e inalo fumaça de cigarros
e as putas e os empregados do bar
e os funcionários da mercearia
nunca saberão
que ele se encontra
lá dentro.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou muito duro pra ele,
e digo, fica escondido,
quer me arruinar?
quer me fuder o
meu trabalho?
quer arruinar
as minhas vendas de livros
na Europa?
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou muito esperto,
só o deixo sair à noite
às vezes
quando todos estão dormindo.
e digo, eu sei que você está aí,
por isso
não fique triste.
depois,
coloco-o de volta,
mas ele canta pouco lá dentro,
não o deixo morrer de todo
e dormimos juntos
assim
com o nosso
pacto secreto
e é bom o suficiente
para fazer um homem chorar,
mas eu não choro,

vc choraria?

Charles Bukowski

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

O retoque final (Olga Orozco)

tra(b)dução de mais um poema de Olga:

O retoque final

É este aquele que amavas.
A este rosto falaz que burla seu modelo de lenda,
a estes olhos imóveis que medem a vantagem de ter invertido a cegas teu destino,
a estas mãos mesquinhas que apostam à pura terra sua ganância,
consagraste os anos do pesar e da espera.
Esta é a imagem real que provocou os belos espelhismos da ausência:
corredores sedosos iluminados pela repetição do eco,
pelas sucessivas esfíngies do erro;
desvãos até o céu, subsolos até o recuperado paraíso,
quartos à deriva, quartos como de plumas e diamantes
nos quais provavas cada noites os sóis e as chivas de teu sempre jamais,
enquanto ele sorria, extranhamente imóvel, absorto no abraço da perduração.
Eles estava no alto de qualquer escada,
ele saía por todas as janelas para o vôo nupcial,
ele te chamava por teu verdadeiro nome.

Construções em vão,
sustentadas apenas pelo tremor de um beijo na memória,
por essas vibrações com que volta um adeus;
cárceres do destino, cárceres insensatos que o mesmo Piranesi envidaria.
Basta um sopro de areia, um encontro de laços desatados,
uma palavra fria como a lixa e a suspeita,
e essa urdidura de lamparinas e vapor se desmorona com um ranger de asas,
se dissolve como templo de mel, como pirâmide de neve.
Doçuras para moscas, ruínas para o enxame da profanação.
Querias incendiar os fantasiosos depósitos do ontem,
rompes as maquinarias com que forjou a recordação das armadilhas para hoje,
o inútil e pérfido disfarce para amanhã.
Ou querias ainda mais não ter olhado nunca o aleivoso rosto,
não ter visto jamais o que não foi.
Porque sabes que ao final dos últimos fulgores, das útimas névoas,
acabará por despregar-se, voraz como uma praga, outra vez todavia,
a inevitável fita de toda sua existência.
Ele passará outra vez nessa rajada de velozes visões, de dias migratórios;
ele, com seu rosto de outrora, com tua história inconclusa,
com o amor saqueado à insuportável pele da mentira,
abaixo desta queimadura.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

A PUTA DE CADA DIA


A PUTA DE CADA DIA


08/09/2009


Seria a puta daquele que a fizesse uma. Não era mulher cotidiana, esporrava entre pernas dores de uma barbárie. Não sabia o significado da palavra “felicidade” e abortava filhos não desejados, quase corrompidos. Ainda sangrava e como sangrava. Confundia-se entre o existencialismo e o materialismo. Não era mulher parideira. Era um ser em eterno combate com sua própria natureza. Ventava cabelos entre florestas e relutava em aceitar existência. Não era mulher refletida e manifesta em costelas de um único indivíduo. Era a própria coluna: mulher. A diferença rasgava sua boceta de Pandora, ainda molhada pelos males do mundo. Negava! Negava! Abnegava! E, na Bíblia, encontrou sua resposta: seria a puta que jamais iria parir.
Salve Nossa Senhora!



terça-feira, 1 de setembro de 2009




FERIDAS DE UMA SACI


02/09/2009


A contradição do ser
arrancada como lâmina
não sangra: SUICÍDIO

na tormenta, nada se ouve
ou se range
apenas cala!

resvala, resvala
mascara
a senzala

um mal-estar me acomete
e não sou mais a mesma

cansei
juro que cansei!

sórdidos corpos
bailam para um deus morto

e ninguém vê
apenas crê

rastejo invisível
em tapetes vermelhos
e alguém ouve meu corpo?

meu corpo está aí
dançando pelo chão


esquálido
e quase esquartejado de si

Amém e Além



quarta-feira, 26 de agosto de 2009

EI DEFUNTO

Remexia-se na cama como defunto na cova.

Ei, defunto

o tempo seduz ponteiros de madeira fria
meras redundâncias contemporâneas...

Ei, defunto

Neruda se confunde com tempos verbais
lombadas de livros deixam ásperas as mãos de Borges.

Ei, defunto

vem, com dissonante voz, vem
alimenta ruídos de meu estômago

ei, defunto

quase me esqueci das entrelinhas esgarçadas
cobre meu corpo com teu manto noturno
e, por fim, descobre a aurora de meu corpo
no fundo de um quarto de Van Gogh

Ei, defunto
Ei, defunto!
Ei, defunto?

A sete palmos lhe beijo a face
quem sabe de amanhã

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Vida fugaz

um universo estrangeiro
através da janela
apenas a noite e o mar
frias e malignas ondas negras
sem compaixão ou consciência
ouve-se a voz do mar e do vento
força criativa junto ao ódio
onde o relógio para
é preciso reiniciar

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Dream tonight

Céu azul extremo
Parece que acordo num filme americano
Em que a rotina sem graça sufoca
Horas no trabalho
Que demoram a passar
E dias que passam rápido demais
I’m still thinking about you
Alguns minutos de vídeos na internet
Um riso, uma bela canção
Um rock para levantar o astral
Uma comida que tanto faz
Uma troca de carinho com colegas tão legais
Uma vida sem sentido maior
Eu sonhava algo mais
Sem glamour, sem realizações dignas da história
Sem amores arrebatadores correspondidos
Sem cartas
Sem filhos
Horas inexatas
Hora de partir, hora de partir dessas ideias latentes
Hora de mergulhar fundo nos ideais
Concretizar melhoras
Concretizar uma busca em vão
Voar, voar
Let’s enjoy the Day
Que chegue a noite para me entorpecer

Valéria Penna

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Deus: andai-me - vozes, dores, amores, de Maria do Rosário Lino


A obra Deus: andai-me – vozes, dores, amores, de Maria do Rosário Lino, é poesia concreta, mas não no sentido das escolas ou estilos literários, mas porque suas palavras ganham materialidade quando se encontram com nossos olhos ou são pronunciadas pela nossa boca.

Seus versos são intensos e autênticos como a autora, seja em dor, em amor, em paixão, em fantasia, em prazer, em humor.

E lê-los é viver um pouco da vida dela, mas também é reviver a nossa, seja em memória, em presente ou em futuros possíveis.

Não é possível medir o sofrimento das pessoas. Não é possível medir a intensidade com que elas vivem seus momentos de dor e de amor. Mas nesta obra, é possível sentir a dor e o amor nos seus limites, ainda que a intensidade máxima seja a nossa e não a da autora. Ainda assim, as entranhas se revelam em palavras.

Eu, um ovo rachado.
Desmembrado e morto-vivo.
Venham abelhas, façam levitar-me
De encontro ao Sol, o meu nascedouro.”

Maria do Rosário Lino, em Deus: andai-me

O belo é o velho
Que ficou rouco
De tanto ser feliz.”

Maria do Rosário Lino, em Deus: andai-me

O livro foi lançado no último dia 8 (de julho)na Biblioteca Adir Gigliotti, pela Editora Komedi.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

o contrário e o remédio

preciso de uma pílula pra dormir
café pra acordar
ritalina pra me concentrar
de maconha pra rir

pra te amar mais
uma dose de gim

preciso de todos esses antídotos de mim

domingo, 7 de junho de 2009

CORRERIA

CORRERIA

07/06/2009

corre ... corre ...
correria ...
ela ia ...
favela ...
corre ... corre ...
dpo ... siglas ...
e mães choram pelos becos
pelos filhos perdidos
pelos filhos assassinados
assassinados por eles
aqueles uniformizados
dpo
corre ... corre ...
CORRE trabalhador
CORRE mulher
CORRE criança
a polícia vem aí
e o sangue dos pobres escorre pelos bueiros das favelas...
e ninguém vê...
nenhuma mancha nos jornais ...
chega de reticências ...

é hora de resistência !!!!


terça-feira, 2 de junho de 2009

Quadras impopulares

o melhor jeito de arrancar
do peito um prego que não quer sair
é pregar outro prego bem
no meio do prego que não quer sair

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Joguinhos de for(ç)as

d'efeito

Esta última postagem da Camila de "O Desbunde" me lembrou uma tiradinha que criei para uma série que chamo de Frases d'efeito. Lá vai:

Criado mudo. Criado ideal. Adapta-se a qualquer canto, do lírico ao popular.

terça-feira, 26 de maio de 2009

CRIADOR

Criador

26/05/2009

criado - criatura - criador
cria - ria - ia
cri - cri - cri
cria a dor
Ele
cria tua
dor
Ele
cria - ria - ia
cri - cri - cri
e o criado ficou mudo....

domingo, 24 de maio de 2009

quarta-feira, 20 de maio de 2009

To the evening star

Thou fair hair'd angel of the evening,
Now, whilst the sun rests on the mountains, light
Thy bright torch of love, thy radiant crown
Put on , and smile upon our evening bed!
Smile on our loves, and, while thou drawest the
Blue curtains of the sky, scatter thy silver dew
On every flower that shuts its sweet eyes,
In timely spleep. Let thy west wind sleep on
The lake; speak silence with thy glimmering eyes,
And wash the dusk with silver. Soon, full soon,
Dost thou withdraw; then the wolf rages wide,
And the lion glares thro' the dun forest;
The fleeces of our flocks are cover'd with
Thy sacred dew: protect them with thine influence.

William Blake


À estrela vésper

Tu, anjo noturno de alva cabeleira,
Agora, enquanto o sol se inclina sobre a colina, inflama
Teu reluzente lume, coloca a radiante coroa
E sorri sobre o leito da noite!
Sorri sobre nossos encantos enquanto recolhes
As cortinas azuis dos céu, esparge teu argênteo orvalho
Sobre cada flor que cerra ao sono seus doces olhos,
Deixa que o vento do oeste adormeça sobre o lago
Fala em silêncio com os teus luminosos olhos
Banha de prata o crepúsculo e de repente
Te retiras enquanto enfurece o lobo,
E o leão o escuro bosque espreita:
Os velos de nossos rebanhos recobriram-se
Com o teu sagrado orvalho;
Protege-os com os teus sutis sortilégios.

(tradução de Alberto Marsicano)

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Benedetti vive!

Mario Benedetti virou passarinho. Quem quiser conhecer suas poesias clique aqui. Procurem na internet, no youtube sobre ele. Abaixo segue um poema tra(b)duzido sobre a morte de Pinochet. E um video onde declama seu poema "Desaparecidos"


Obituário com urras!

Mario Benedetti

Vamos festejar!

Venham todos

os inocentes

os fudidos os que gritam de noite

os que sonham de dia

os que sofrem o corpo

os que alojam fantasmas

os que pisam descalços

os que blasfemam e ardem

os pobres congelados

os que amam alguém

os que nunca se esqueceram

vamos festejar

venham todos

o canalha está morto

se acabou a alma negra

o ladrão

o porco

se acabou para sempre

urra! que venham todos

vamos festejar

e não digam

que a morte

sempre apaga tudo

a tudo purifica

qualquer dia

a morte

não apaga nada

ficam

sempre as cicatrizes

urra!

morreu o cretino

vamos festejar

e não choremos sem motivo

que chorem seus iguais

e que engulam suas lágrimas

se acabou o chefe dos monstros

se acabou para sempre

vamos festejar

e não sejamos tolos

crendo que este

é um morto qualquer

vamos a festejar

e não vamos nos descuidar

e esquecer que este

é um morto de merda.





Están en algún sitio / concertados
desconcertados / sordos
buscándose / buscándonos
bloqueados por los signos y las dudas
contemplando las verjas de las plazas
los timbres de las puertas / las viejas azoteas
ordenando sus sueños sus olvidos
quizá convalecientes de su muerte privada

nadie les ha explicado con certeza
si ya se fueron o si no
si son pancartas o temblores
sobrevivientes o responsos

ven pasar árboles y pájaros
e ignoran a qué sombra pertenecen

cuando empezaron a desaparecer
hace tres cinco siete ceremonias
a desaparecer como sin sangre
como sin rostro y sin motivo
vieron por la ventana de su ausencia
lo que quedaba atrás / ese andamiaje
de abrazos cielo y humo

cuando empezaron a desaparecer
como el oasis en los espejismos
a desaparecer sin últimas palabras
tenían en sus manos los trocitos
de cosas que querían

están en algún sitio / nube o tumba
están en algún sitio / estoy seguro
allá en el sur del alma
es posible que hayan extraviado la brújula
y hoy vaguen preguntando preguntando
dónde carajo queda el buen amor
porque vienen del odio

sábado, 16 de maio de 2009

Terrível abandono

Em que terrível abandono os deixei
Vocês, poemetos, poeminhas, poemeus

E que falta de inspiração recorrente
E que ausência de dedicação veemente

Que num domingo ensolarado
Num Sun day qualquer,
Eu possa aqui, inspirado,
Embora mulher
Do verso encontrado
Poemar como se quer.

Aline

sexta-feira, 15 de maio de 2009

XXVI

Durante o dia constrói
Seu muro de girassóis,
(Sei que pretende disfarce
E fantasia.)
Durante a noite,
Fria de águas
Molhada de rosas negras
Me espia.
Que queres, morte,
Vestida de flor e fonte?

- Olhar a vida.

(Hilda)

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Câmbio

Câmbio
25/03/2007

Adormecida pelas sinalizações.
As bandeiras não acompanhavam
meu ritmo aéreo,

e eu mais leve que qualquer nuvem
mais carbônica que qualquer oxigênio
apenas garganta.
Muda.

“Câmbio”
...
os pássaros suavam entre hélices;
uma espiral em movimentos subliminares
quase elípticos.

Mas não! Não!
Não poderia ser!
...
“Câmbio”

poeira flutuante do ar,
turvo apêndice que
nada.
(...)


terça-feira, 5 de maio de 2009

mais de olga orozco

tra(b)dução... sugestão: os poemas de Olga são poemas que exigem duas leituras, suas imagens parecem insondáveis, mas se insiste na leitura as imagens vão se revelando, é preciso se acostumar com esse lugar de onde ela fala e como ela descreve coisas tão abstratas.

Em tua imensa pupila (Olga Orozco)

Me reconheces, noite,
me apalpas, me reencontras,
não como avara senão como uma falsa cega,
ou como alguém que não sabe nunca quem é a náufraga e quem entoa os cantos de lamento.
Me escolhestes às escuras para estátua de tuas alegorias,
apenas pelo costume de submergir-me até onde se acaba o mundo
e perder a cabeça em cada nuvem e a cada passo o solo debaixo dos pés.
E acaso não fui sempre tua enteada preferida,
essa que se adianta sem vacilações até a armadilha urdida por tua mão,
a que morde o veneno na maçã ou copia tua beleza do espelho traidor?
Esqueceram de me atar ao mastro da casa quando tu passavas
para que não me fosse, a cada vez, atrás de tua flauta encantada de ladra de crianças,
e foi, às custas do dia, que confundi em tua bolsa a brancura e a neve, os lobos e as sombras.
Agora é tarde para voltar atrás e corregir as horas do acordo com o sol.
Agora já me marcaste com teu alfabeto negro.
Pertenço a tribo dos que se hospedam em radiantes trevas,
dos que vêem melhor com os olhos fechados e se deitam ao lado do abismo e alçam vôo e não voltam
quando Tomás abre de par em par as portas do evidente meiodia.
Tu fundas tua Tebaida no invisível. Tu não concedes provas.
Tu aconteces, secreta, inumerável, sem formular,
como uma contemplação que se volta para dentro,
onde cada sinal é o tremor de um pássaro perdido em un recinto imenso
e cada subida um salto no vazio contra degraus e ausências.
Tu me vigias desde todas as partes,
Descorrendo cortinas, perfurando os muros, espiando entre fardos de penumbra;
me encontras e me olhas com o olhar do caçador e da testemunha,
enquanto descubro no meio de teus matagais o esplendor de uma cidade perdida,
ou busco em vão o rastro do porvir em tuas encruzilhadas.
Tu vais quem sabe para onde seguindo as variações da tentação inalcançável,
experimentando os rostos extremos do horror, da extrema beleza,
a impossível distancia dos outros, o tato do inferno,
visões que se amontoam até onde te alcança a obscuridade que tenho,
até onde começas a rodar morte abaixo com carruagens, com pedras e com cachorros.
Mas não te peço lamparinas exumadas nem véus entreabertos.
Não te reclamo uma lição de luz,
como não reclamo a água por chama nem a vigília pelo sonho.
Ou deveria confiar menos em ti que nas duras, reciosas estrelas?
Temos visto tantos mistérios insolúveis com seus brancos reflexos, mesmo que a pleno sol!
Basta que me leve pela mão como através de um bosque,
noite atapetada, noite sigilosa, que aprenda eu o que queres dizer, o que sussura o vento,
e possa ao fim ler até o fundo de minha pequena noite em tua pupila imensa.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Bom poema para tempos de crise

A espera (Ferreira Gullar)

Um grave acontecimento está sendo esperado por todos

Os banqueiros os capitães de indústria os fazendeiros
ricos dormem mal. O ministro
da Guerra janta sobressaltado,
a pistola em cima da mesa.

Ninguém sabe de que forma desta vez a necessidade
se manifestará:
se como
um furacão ou um maremoto
se descerá dos morros ou subirá dos vales
se manará dos subúrbios com a fúria dos rios poluídos
Ninguém sabe.
Mas qualquer sopro num ramo
o anuncia
Um grave acontecimento
está sendo esperado
e nem Deus e nem a polícia
poderiam evitá-lo.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

A culpa é dos hormônios

Notícia de capa da página do Yahoo nesta quarta-feira, 29 de abril de 2009:

"Excesso de hormônios explica a dor no peito quando a relação termina"


Dor no peito agora

é problema hormonal

Assim como a traição feminina

E as já conhecidas TPM e Menopausa

Agora eu pergunto:

Quem injetou tanto hormônio no mundo assim?

Frango peitudo alimentando

Franguinhas turbinadas

Super-Hormônios

Super Potências

E pelo ralo escorre

Água contaminada

Hormônio também para as baratas

Para as bactérias

Para qualquer coisa

E se falta amor no mundo,

Se falta bom senso,

Se falta solidariedade,

A culpa é dos hormônios


segunda-feira, 27 de abril de 2009

Olá companheiras e companheiros de poesia. Retorno à vida e espero ser bem-vinda!
Abraços


Mandrágora

Camila Marins - 24/03/2007

Da terra infecunda
molhada pelo sêmen;
de grãos pisciformes
que desfazem sua sepultura.

Opróbrios!
Seios fétidos; murchos
que ladram em noite de lua cheia.

Seu grito antropomórfico
invade meu útero: bailarino estéril.

Argila com sede de placenta,
expira.
Agora molda o feto; ceifando
gota a gota de seu sangue.

No ar, apenas piedade
que embala toda a lucidez no colo
entre espáduas; com suas sementes narcóticas,

as olheiras gritam e
alucinam frutos espalhados pela terra.

Vácuo.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Morte

Veio como um deja vu não metafórico:

O cheiro de passar roupa na sala.

E meus dentes como que grudaram uns nos outros – um Hannibal Lecter sem máscara.

A quentura na tábua de passar marcada de marrom,

O cheiro de fluído de passar dizendo: Não vá amanhã cedo.

Mas a poesia só fala de ir, não de ficar.


Pode falar de voltar um dia:

Eu passando roupa na sala,

Vou sentir o cheiro de queimado e pensar: Volta.

Mas a poesia só fala de ir, não de ficar.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Vida quixotesca


Como Quixote,
Um cavalheiro destemido,
Um eterno apaixonado,
Um iludido.

Como Quixote,
Um alguém respeitado,
Em meio aos risos.

Como Quixote,
Perdido entre a ilusão e a realidade.

Como Quixote,
Solitário é o homem.
E determinado
Na criação de ilusões de vida.

Como Quixote,
O forte no fraco.
É vitorioso o coração
na busca do que o faz eterno: o amor.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Colo

- O que acontece hoje que o seu colo está tão retraído?
- Não sei. Talvez timidez, talvez eu não esteja me sentindo a vontade. Talvez porque eu tenha medo do que o senhor vai me dizer depois.
Mais algumas tentativas, um pouco de dor. Procurou, procurou até encontrar lá no fundo um colo retraído.
- Achei!
Sem consolo, na mesa do ginecologista o colo é outro.

Feriado de páscoa ou porque o cristianismo não me agrada mais

Na semana anterior
Derrete-se o planejamento pedagógico
De creches e escolas de crianças
E coloca-se em um caldeirão
Junto com as professoras
Para depois por na forma do ridículo:
Fantasias de coelho,
Teatro ultra-amador
De fantoches que eram bicho de pelúcia
E tiveram suas vísceras de algodão
Retiradas pelo cu
Falta verba,
Mas não tem problema,
Gasta-se dinheiro
Com ovos de chocolate
Além dos ovos de parafina marrom,
Que dizem ser comestíveis,
Distribuídos pela empresa da mer(en)da

No feriado
Parentes fadigados
Do trabalho que lhes garantem
Seus respectivos carros importados

Durante a semana
Curam com álcool
Todos os dias
As cabeças baixas
As bocas caladas
Os olhos fundos

Na ceia em família
Bebem coca-cola
Porque em tempo de crise
O vinho disponível
Vai dar dor de cabeça
Todos bons cristãos,
Rezam antes de comer
Falam da vida dos padres,
Dos fiéis
E depois vão à procissão
Encontrar padres e fiéis
Que renderão assuntos
No próximo almoço

E está sempre tudo bem
Estão sempre todos felizes
É muito estranho dizer o contrário
Há de se manter o sorriso
Para alimentar a hipocrisia
E ignorar, ignorar, ignorar
A infelicidade óbvia,
A falta de assunto,
O alcoolismo,
A causa psicossomática das doenças,
O passado e o presente
Para sermos uma família cristã feliz
Para todo o sempre
Amém.

domingo, 12 de abril de 2009

Olga Orozco


Mais uma tra(b)dução da Olga Orozco.

Para destruir a inimiga

Mire essa que avança desde o fundo da água borrando o dia com suas mãos,
vazando em pedra cinza o que tu destinavas à memória do fogo,
cubrindo de cinzas as mais belas estampas prometidas pelas duas caras dos sonhos.
Ela carrega sobre seu rosto o sinal:
essa cor de inverno deslumbrante que nasce onde morres,
essas sombras como de grandes asas que varrem desde sempre todos os juramentos de amor.

Cada noite, ao longe, a essa distância onde o amante dorme com os olhos abertos a outro mundo aonde nunca chegas,
ela troca seu nome pelo ruído mais triste da areia;
tua voz, por um soluço sepultado no fundo da canção que já nada recorda;
teu amor, por uma estéril cerimônia onde se imola o crime e o perdão.
Cada noite, no desabitado lugar onde voltas,
ela põe a secar a cifra de tua idade ao baixio da maré,
ou cose com o fio de teus dias a noite do adeus,
ou prepara com o sabor do tempo mais formoso essa turva beberagem que degusta na solidão,
esse ardente veneno que outros chamam nostalgia
e que tão lentamente transforma o coração em um punhado de sementes amargas.

Não a deixes passar.
Apaga seu caminho com a fogueira da árvore partida por um raio.
Expulsa seu reflexo onde correm as águas para que nunca volte.
Sepulta a medida de sua sombra debaixo de tua casa para que por sua boca a terra a reclame.
A nomeie com o nome do desabitado.
A nomeie com o frio e o ardor,
com a cera fundida como uma neve suja de onde cai a forma de sua vida,
com as tesouras e o punhal,
com o rastro de um animal ferido sobre a pedra negra,
com o fumo da brasa,
com a fossa do impossível amor aberta ao vermelho vivo em seu flanco,
com a palavra de poder
a nomeie e a mate.
E não esqueças de sepultar a moeda.
Das alturas da noite ao fundo do pesadelo, pálpebra do inverno mais longo.
Até abaixo da esfíngie e da inscrição:
"Reino das espadas,
Dama das desgraças
Senhora das lágrimas:
no lugar em que estejas com dois olhos te fixo,
com três nós te ato,
o sangue te bebo
e o coração te parto.".

Se olhas outra vez no fundo do vaso,
só verás agora uma descolorida cicatriz cujas bordas se fecham onde se unem as águas,
mas podem abrir-se em outra ferida,
onde
ninguém sabe.

Porque ela te foi anunciada no sétimo dia,
- no dia primeiro de tua culpa -,
e assumiu seu nome como o teu,
com os nomes vazios, com o amor e com o número,
com o mesmo colar de sal amargo que ata a condenação a tua garganta.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Sem título

Sem título

sem paciência para a chateação no quarto ao lado
pai e mãe em discussões sobre cobertor
melhor seria se eles se cobrissem ou se descobrissem
como quem procura sentido em frases dúbias
a guerra pelo lençol
as coisas por fazer
sempre algo a reclamar
e eu aqui fazendo o mesmo
a porta fechou
o assunto acabou
e o título ainda não chegou

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Supermercado na Califórnia

O poema, de Allen Ginsberg.
Mais duas traduções: de Rodrigo Garcia Lopes, tradutor de Walt Whitman.
de Cláudio Willer, tradutor do próprio Ginsberg.

A Supermarket in California (Allen Ginsberg)

What thoughts I have of you tonight Walt Whitman, for I walked down the sidestreets under the trees with a headache self-conscious looking at the full moon.

In my hungry fatigue, and shopping for images, I went into the neon fruit supermarket, dreaming of your enumerations!

What peaches and what penumbras! Whole families shopping at night! Aisles full of husbands! Wives in the avocados, babies in the tomatoes!—and you, Garcia Lorca, what were you doing down by the watermelons?


I saw you, Walt Whitman, childless, lonely old grubber, poking among the meats in the refrigerator and eyeing the grocery boys.

I heard you asking questions of each: Who killed the pork chops? What price bananas? Are you my Angel?

I wandered in and out of the brilliant stacks of cans following you, and followed in my imagination by the store detective.

We strode down the open corridors together in our solitary fancy tasting artichokes, possessing every frozen delicacy, and never passing the cashier.


Where are we going, Walt Whitman? The doors close in an hour. Which way does your beard point tonight?

(I touch your book and dream of our odyssey in the supermarket and feel absurd.)

Will we walk all night through solitary streets? The trees add shade to shade, lights out in the houses, we'll both be lonely.

Will we stroll dreaming of the lost America of love past blue automobiles in driveways, home to our silent cottage?

Ah, dear father, graybeard, lonely old courage-teacher, what America did you have when Charon quit poling his ferry and you got out on a smoking bank and stood watching the boat disappear on the black waters of Lethe?


Berkeley, 1955


UM SUPERMERCADO NA CALIFÓRNIA

Cada pensamento tive com você, Walt Whitman, enquanto caminhava

pelas calçadas sob as árvores com dor-de-cabeça consciente de mim olhando a lua cheia.

Cansado de fome, fazendo shopping de imagens, fui até o néon do supermercado de frutas, sonhando com suas enumerações!

Que pêssegos, que penumbras! Famílias inteiras indo pro shopping de noite! Corredores cheios de maridos! Esposas nos abacates, bebês nos tomates! –

e você, Garcia Lorca, o que fazia no meio das melancias ?


Eu vi você, Walt Whitman, sem filhos, velho safado solitário, fuçando as carnes do refrigerador e paquerando os garotos da seção de verduras.

Peguei você fazendo perguntas pra eles: Quem matou as costeletas de porco?

Quanto custa a banana? Você é meu Anjo?

Entrei e saí das prateleiras de enlatados te seguindo,

e eu na minha cabeça sendo seguido pelo segurança.

Vadiamos juntos pelos corredores abertos em nossa imaginação solitária

provando alcachofras, passando a mão nos congelados sem nunca passar pelo caixa.


Pra onde agora, Walt Whitman? As portas se fecham em uma hora.

Pra que direção sua barba aponta esta noite ?

(Toco seu livro e sonho com nossa odisséia no super e me sinto absurdo.)

Vamos andar a noite inteira pelas ruas solitárias? Árvores somam sombras às sombras, luzes se apagam nas casas, logo estaremos sós.

Vamos passear sonhando com a América perdida do amor cruzando os carros azuis

nas estradas, de volta pra nossa cabana silenciosa?

Ah, querido pai, de barba grisalha, velho e solitário professor de coragem, qual América tinha na mente quando Caronte parou de empurrar a barca e te deixou na margem nevoenta olhando-a sumir nas águas negras do Letes?


Tradução: Rodrigo Garcia Lopes


UM SUPERMERCADO NA CALIFÓRNIA

Como estive pensando em você esta noite, Walt Whitman,

enquanto caminhava pelas ruas sob as árvores, com dor de

cabeça, autoconsciente, olhando a lua cheia.

No meu cansaço faminto, fazendo o Shopping das imagens, entrei no supermercado das frutas de néon sonhando com tuas enumerações!

Que pêssegos e que penumbras! Famílias inteiras fazendo

suas compras a noite! Corredores cheios de maridos!

Esposas entre os abacates, bebês nos tomates! - e você,

Garcia Lorca, o que fazia lá, no meio das melancias?


Eu o vi Walt Whitman, sem filhos, velho vagabundo solitário, remexendo nas carnes do refrigerador e lançando olhares para os garotos da mercearia.

Ouvi-o fazer perguntas a cada um deles; Quem matou as

costeletas de porco? Qual o preço das bananas? Será você meu

Anjo?

Caminhei entre as brilhantes pilhas de latarias, seguindo-o

e sendo seguido na minha imaginação pelo detetive da loja.

Perambulamos juntos pelos amplos corredores com nosso

passo solitário, provando alcachofras, pegando cada um dos

petiscos gelados e nunca passando pelo caixa.


Aonde vamos, Walt Whitman? As portas fecharão em uma

hora. Para quais caminhos aponta tua barba esta noite?

(Toco teu livro e sonho com nossa odisséia no supermercado e sinto-me absurdo)

Caminharemos a noite toda por solitárias ruas? As árvores

somam sombras às sombras, luzes apagam-se nas casas,

ficaremos ambos sós.

Vaguearemos sonhando com a América perdida do amor,

passando pelos automóveis azuis nas vias expressas, voltando

para nosso silencioso chalé?

Ah, pai querido, barba grisalha, velho e solitário professor

de coragem, qual América era a sua quando Caronte parou

de impelir sua balsa e Você na margem nevoenta, olhando a barca desaparecer nas negras águas do Letes?


Tradução: Cláudio Willer


quarta-feira, 8 de abril de 2009

Céu azul duma quarta-feira

O céu me inspira
Inspiração de vento
Ventania transpirada
Ventania tresloucada

Olho para o céu
O céu no olho
O azul na memória

Olho pra cima
Não há mais nada

Nada preenchido de concreto
Teto ausente de vida
Vida repleta de memória

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Roberto Jorge Santoro

Nasceu em Buenos Aires em 17 de abril de 1939. Foi pintor, repositor, professor em uma escola industrial, tipógrafo, vendedor ambulante e poeta. Foi sequestrado por elementos do terrorismo de Estado em 1o de junho de 1977. O levaram ilegalmente de seu trabalho. Até hoje se encontra desaparecido.

Se apresentava assim: "sangue tipo A, fator RH negativo, 34 anos, 12 horas diárias a busca castradora, desumana, do soldo que não se alcança. Dois empregos, escritor surrealista, ou melhor, realista do sul. Vivo em uma engrenagem. Filho de operários, tenho consciência de classe. Rechaço ser travesti do sistema, essa podre máquina social que faz que um homem deixe de ser um homem, obrigando-o a ter um despertador no cú, um bilhete de loteria na cabeça e um cadeado na boca."


Segue uma tra(b)dução:

AS COISAS CLARAS


minha voz está em seu lugar
o coração sabe algo mais porque me dói

por isso digo:
terrível ofício
é repartir equivocadamente os abraços
e que a alma viva entre cachorros esfomeados

um de meus erros
foi crer que todos éramos irmãos

e agora
não se pode trocar o horizonte pela nostalgia
há que esquecer-se dos velhos sorrisos
e andar com a dor às costas
para que sirva definitivamente

nunca disse
minha lágrima foi grande
sofri
não me quiseram

cada um conhece sua dor
e sabe de que maneira conversar com a desgraça

que venha a vida e me golpeie
de nada vale fechar os olhos

um homem dormindo
é uma dor que descansa

é duro o amor quando se nega
um dia no entanto recosta seus abraços
apoia seu mistério em minha cabeça
e me leva a viver no primeiro piso de um incêndio

não comparo
simplesmente dou meu fruto
e espero

da semente mais humilde
pode brotar o fogo ou a formosura

se estou encurralado entre dois beijos
decido me enroscar ao pé de meu coração
e sonho

sou triste até os sapatos

à hora do chá
minha alegria se senta e chora comigo

mas sustento que um dia
ainda que o amor seja o irmão implacável da chuva
da minha casa a teus olhos
não haverá naufrágios.

(De Las cosas claras, 1974)

domingo, 5 de abril de 2009

Domingo

Escolho meu dia domingo
pra minguar
Poeminha tolo
Pra inaugurar
a mesa dos poetinhas
Minguada rima
tira o gosto
menos sal
mais um gole
Pro domingo minguar